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SOBRE TRENS E GAIVOTAS

SOBRE TRENS E GAIVOTAS

Mariana Ianelli

Para Ana Claudia Quintana Arantes

Plataforma lotada. Cada um ali, se fosse ouvido, teria um livro extraordinário para contar. Era isso que fazia uma mulher, no caos vigiado da guerra, enquanto chegavam as listas das convocatórias e partiam os trens. Ouvia as vidas de cada um, de onde vinham, o que faziam antes de desembocarem ali, o que esperavam ou não esperavam mais.

Era o mesmo trem para todos e maneiras muitos diferentes de encarar a viagem. A mulher ouvia e via de tudo. Gente que pagaria qualquer preço para ficar, uma fortuna que fosse por um atestado, um carimbo, uma licença especial, uma negociação de bastidor. Via gente jovem com a alma arrebentada, gente velha com a dignidade intacta. Viu uma vez um pai abençoando o filho, uma senhora que se enfeitava, um menino que se sentia pronto e na hora de partir entrou em pânico. A esperança ia da mais próxima à mais insoletrável. A esperança de não ser convocado, a esperança de cancelamento do transporte, a esperança de um problema nos carris, a esperança de um milagre.

A mulher também tinha sua história extraordinária, caso perguntassem. Levava a poesia de Rilke numa mochila, sonhava conhecer a Rússia, tinha amado alguém que àquela altura estava morto. Agora ali, ela estava para os outros. Ia e vinha com um saco de telegramas, vestia crianças, calçava os descalços, carregava os bebês de mães em estado de choque. Também ela com pesadelos próprios, mas uma disposição humana silenciosamente santa, trabalhando, confortando, apetrechando os convocados da semana. Às vezes, exausta, ia ver as gaivotas. Um quarto de hora a olhar para elas, entre nuvens cheias de chuva, e era como estar no meio de um conto de fadas.

© Mariana Ianelli

(Imagem: Mémorial de la Deportation - Paris - Memorial de denúncia ao genocídio perpetrado pelo Nazismo no Holocausto, contra a povo judeu - Local de reflexão sobre a violência, sobre o autoritarismo opressivo e racista das ditaturas ideológicas - Homenagem a Etty Hillesum, Anne Frank e milhares de outros deportados aos Campos da Morte.)

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