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Ianelli - O pintor da cor sublime


O ateliê do grande mestre não está vazio. O artista nos deixou no triste e doloroso dia 26 de maio, numa trágica manhã cinzenta da capital paulistana, trágica aos nossos sentimentos pessoais e artísticos. Ele o fez suavemente como fazia tudo, preparando-nos com antecedência para o desfecho, como preparava de maneira suave e coerente, a transição de suas fases. Porém essa possibilidade presumida não nos aliviou em nada. O choque restou brutal a todos nós, como costumava acontecer de mesmo modo quando nos defrontávamos com suas novas propostas artísticas. Elas sempre surpreenderam pela coragem da mudança, pela qualidade no acabamento e, em especial, pela originalidade de sua invenção criativa.

Ianelli sempre foi um poderoso artífice de suas próprias mutações, transformou-se continuamente como artista, na vazão do seu pensamento inquieto e pesquisador e nunca ancorou-se no sucesso de um eventual reconhecimento de uma de suas fases. Evitou o conforto de uma fórmula bem sucedida e buscou sempre algo novo que mantivesse incandescente a chama interior de sua criatividade. Pela ponderação e profunda reflexão exercitadas enquanto o fazia, já não mais retornava ao estágio anterior.

Ao mudar as características de suas fases, foi desbravando o universo da pintura e encontrando, às vezes, a rarissima condição de ser paradigmático; do figurativo à abstração, do gestual matérico ao abstracionismo geométrico estruturado na cor, do conjunto de quadrados superpostos em sutis transparências cromáticas à sublime descoberta das vibrações pictóricas infinitas e ilimitadas. Enfrentou ainda os desafios da tridimensionalidade nas esculturas em pedra, em hierático mármore de Carrara e em bronze, criando centenas de obras de pura linguagem ianelliana. Aventurou-se em relevos em madeira nos quais pintava as superfícies a óleo, recriando um misto de esculturas de parede e pintura. Um notável conjunto ainda inédito (salvo uma única apresentação de algumas dessas obras numa sala especial de sua grande e memorável restrospectiva na Pinacoteca de São Paulo, em 2002). Da mesma forma que as séries de gravuras, de tiragens pouco numerosas (litogravuras esplendidamente impressas que nunca foram expostas num conjunto constituído para a observação de seu público). O grande artista fazia estes trabalhos para si, assim como fez o conjunto primoroso, a grandiosa coleção secreta de milhares de estudos a pastel que formam a base de construção de sua gigantesca obra em pintura. Todas essas obras permanecem inéditas, pulsantes e vivas, no ateliê que não está vazio.

O artista paradigmático é aquele que não se parece a ninguém e dali a algum tempo serão os outros que a ele se assemelharão. Arcangelo Ianelli alcançou algumas vezes essa condição em longa carreira - no cromatismo em grises de sua fase figurativa, nos quadrados superpostos da fase geométrica e especialmente na originalissima e singular fase das vibrações. São raros no universo artístico os artistas que alcançaram essa condição do paradigma: Matisse, Giacometti, Brancusi, Miró, Picasso, Tamayo, Chillida, Anselm Kiefer, Karel Appel, De Könning, Marcel Duchamp, Torres Garcia, Piza, Alfredo Volpi...

O ateliê do grande artista não está vazio, porque ali está um conjunto expressivo de obras primas, em todas as suas fases e em variadas formas de expressão - desenhos, esculturas, pastéis, relevos, gravuras e pinturas. Porque nele se escutam os passos e transita a força silenciosa de Dirce Ianelli, sua esposa em todas as intensas horas de sua longa vida, nos momentos duros e nos instantes de epifania; ali está a sua querida “cara-de-ameixa”, sua bela e competente filha Katia, que conduz com talento e mestria o Instituto Arcangelo Ianelli; sua neta Simone que realiza os processos de conservação e restauro de sua obra no acervo da família; e a outra neta, a poeta Mariana, a legítima herdeira de seu nome na condição da potencialidade criativa como artista da palavra.

O ateliê de Ianelli não está vazio porque ali ainda se escutam os ecos das conversas, do alarido e das risadas dos amigos queridos e outros artistas que por ali passaram com frequência - Ferreira Gullar, Paulo Mendes de Almeida, Tomie Ohtake, Volpi, Fiamminghi, Marc Berkowitz, Paulo Machado, Rufino Tamayo, Lizeta Levy, Emanoel Araújo, Olívio Tavares de Araújo, Thomaz Ianelli, João Kon, Radha Abramo, Pierre Soulages e outros.

Ianelli foi um artista autodidata que aprendeu ao extremo fazendo a sua arte, que trocava informações e técnicas com outros artistas, que revelava aos outros o que aprendera ao longo de sua vida, que ensinava os segredos que descobrira nas tintas, nos pigmentos, nos suportes e que aprendia o tempo todo, porque sabia escutar.

Certo dia, caminhando junto a ele no Jardim da Aclimação em São Paulo, cedinho, numa manhã de outono, perguntei-lhe sobre como funcionava o processo de inspiração. Se isso existia, de fato. Ianelli respondeu-me que não, que esse estado era condicionado pelo trabalho. “Se num dia você está um pouco indisposto, sem idéias, talvez isso possa até resultar um dia especial. Comece a trabalhar, comece a desenhar, a colocar os rabiscos num papel, esboçar algo, risque uma tela, tente estruturar alguma idéia ali, apague, desmanche, erre, faça de novo... dali a duas horas você estará tão envolvido no trabalho, tão concentrado, distraído das dificuldades iniciais, que talvez nesse dia aparentemente tão desfavorável, você esteja criando a obra da sua vida... não existe essa tal de inspiração, que cairia sobre você como um raio divino enquanto você está à espera, existe somente o trabalho, o trabalho árduo... desse trabalho sai algo maravilhoso.”

O artista tinha a convicção da beleza e da busca da cor, não da cor industrializada que está pronta no tubo ou no vidro de pigmentos, e sim na cor elaborada, na cor que se busca, na cor que se faz, na cor que não existe. E nessa busca obsessiva, ele se fez o pintor da cor sublime. Quando vemos suas imensas telas de aparência aveludada, em que as cores “cantam baixinho, sussurradamente”, nos perguntamos, como ele conseguiu fazer isso?

Ianelli era amigo leal de seus amigos, em especial, de seus amigos artistas, e eles convergiam ao seu encontro, à sua casa e ao seu ateliê. Em 31 anos de amizade próxima, eu nunca o ouvi falar mal ou com ironia de um outro artista, ele sempre lhes oferecia uma palavra bondosa ou encontrava um argumento convincente para apoiá-los e justificá-los. Sempre. Nunca deixou de apoiar a nenhum deles. E isso podia ser visto silenciosamente no interior recatado de sua casa. No seu ateliê, estavam as suas obras, as suas telas, os estojos das grandes gravuras, os armários corrediços do acervo de pintura, os múltiplos, o pavilhão das esculturas... obras com a sua assinatura. Dele, que é com toda a certeza, um dos grandes artistas brasileiros de todos os tempos.

Dentro da sua casa, no entanto, estavam lá os outros artistas. Em todas as paredes da sua casa, viam-se apenas as obras dos outros artistas, de seus amigos artistas. Lá, naquela casa aconchegante, tão visitada por tantos, em meio a uma floresta densa num centro cosmopolita, quase na Av. Paulista, ali estavam todos eles, por todas as paredes: Alfredo Volpi, Tomie, Thomaz, Stockinger, Siron Franco, Palatnik, Rufino Tamayo, Cuevas, Picasso, Poliakoff, Chemiakin, Fiamminghi, Piza, Aldir Mendes de Souza.

Foi com a arte e com a beleza que o artista Arcangelo Ianelli conviveu. De seu ponto de observação privilegiado, ele via o mundo ao seu redor e o transformava pela sua interpretação artística. E via e convivia, em generosidade, com os outros. Há muita coisa para ser vista e descoberta na sua obra, extensa e bem documentada pelo Estúdio Katia Ianelli. O ateliê do artista não está vazio.

Texto de © Alfredo Aquino - Publicado no Caderno de Cultura - Zero Hora / 30.05.2009

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