Álbum do Primeiro Ano de uma Menina - por Mariana Ianelli
São muitas páginas com árvores, grama ensolarada, pares de sapatinhos perdidos. Entro num bosque por uma trilha estreita, bate a luz de ouro das cinco da tarde, tem uma pomba no caminho.
São muitos rostos de crianças nesse álbum, muitos nomes, Sara, Lorena, Gabriel, Maria Flor, Maria Alice, Murilo, Pedro, Laura, Eva, Ana, Bernardo, Estela, Dante, Carolina. Há o mar, o vento que vem do mar e a areia quente de fevereiro.
Uma borboleta amarela, o som do trotar de um cavalinho, um chacoalhar de conchas e colheres, um objeto cinético de Palatnik. Não há uma só página que passe sem um arrepio feliz, um rabo de gato, uma brincadeira com espelhos. Num dia de maio, Conceição Evaristo sorriu para você. Abro na página de um jasmineiro, é noite de lua cheia, há um barco feito de braços, três baleias flutuando num móbile.
Um balão passeia atado a uma fita, atravessa a avenida, passa pela rua dos correios, contorna a praça, sai no parque, um balão vermelho vivo. Há um primeiro livro predileto, uma história de sonho e liberdade nos desenhos de JiHyeon Lee.
São imagens, miragens, sensações primeiras. Uma sala povoada de animais do subconsciente. Pássaros de Liuba. Uma música do Congo no tambor de Wasawulua. A pele da pétala de um hibisco. A visita das tias como uma reunião de fadas de uma fábula. Os olhos do tempo nos retratos da casa da avó. Uma canç ão do Caetano. Uma canção do Chico. A bailarina de um quadro de Leila Danziger. Um presépio entre as asas de um condor. O fantástico brinco da chinesa de Anita Malfatti. A Cruz de Tau na capela do convento. O gosto do sal.
O gosto da manga. Uma dança de anêmonas. A pele da pétala de uma orquídea. Vou folheando o álbum de instantes dessa menina, mas já várias páginas me escapam, brincam de se esquecer. Dizem que é só começo, mas já não cabe nas minhas mãos.
Não é que faltem palavras: há milhares de átomos delas na atávica linguagem dos sentidos, milhares de instantes em imagens e imagens em espelhos. Mas um milagre não cabe nas mãos de ninguém.
© Mariana Ianelli - Publicado em RUBEM (1º julho 2017)